Memini


Para ouvir ao som de
Paratodos – Chico Buarque

Essa crônica é para mim, mas você pode ler se quiser.
Hoje completam cinco anos que a Camila morreu. Cinco anos. E ainda parece que foi ontem. Ainda lembro perfeitamente de quando recebi a notícia da morte cerebral pela minha mãe, ainda lembro da minha reação, do desespero, do choro, da incapacidade de explicar o que se passava para as pessoas ao lado. Ainda lembro do caixão, ainda lembro dos cheiros dos cravos, ainda lembro onde era a capela, ainda lembro de todos que encontrei lá, tão desnorteados quanto eu. Mas de todas essas lembranças, uma tem um impacto mais intenso, para não dizer especial. Naquele dia, no dia que eu enterrei a Camila eu recebi um memorando que com toda certeza, mudou minha vida.
Lembro de ter chegado ao cemitério e encontrado pessoas que não via há um certo tempo, a própria Camila eu não via há certo tempo e definitivamente aquele não era a melhor maneira ou lugar para encontrar alguém. Mas entre abraços de saudade e perguntas de “o que anda fazendo?” tomei coragem e entrei em definitivo na capela, mirei o caixão, respirei fundo e andei até ele. Eu lembro como se fosse hoje a beleza fria dela ali. Aquele corpo pálido, parado, inexpressivo. Ali. Ela estacionada no auge de seus 21 anos, e eu respirando no auge dos meus 20. Ele fazia aniversário 4 dias depois de mim. Era um ano e quatro dias mais velha que eu. Hoje eu sou quatro anos mais velha que ela. O tempo não é tão linear quanto gostaríamos de acreditar. Fiquei parada a uma certa distância do caixão, mirando aquele rosto, esperando como todo mundo, que ela levantasse daquele sono e viesse me abraçar e me perguntar como eu estava indo. Nesses momentos, quando olhamos fixamente para alguém imóvel a esperança nos dá a ilusão de ótica de vermos olhos quase piscando, narinas quase se entreabrindo e peitos que quase se estufam. A ilusão retroalimente a esperança que a serve. Nessa minha distração percebi que alguém me cutucara e no instinto olhei para trás. Não vi ninguém que poderia ter tentado me chamar e então voltei a olhar o caixão, mas agora a minha fantasia já havia sido desfeita pelo toque que me trouxera a realidade. Tirei os óculos, esfreguei os olhos e quando olhei para baixo vi um papel quase em baixo do caixão. Era uma folha que parecia já ter sido branca um dia, mas o tempo a castigara e agora amarelada que estava, parecia lixo.
Peguei o papel e percebi que estava lacrado. Era uma espécie de telegrama, ou eu imaginei que fosse porque eu nunca recebi um telegrama na vida. Olhei para os lados de novo, agora com o papel na mão e ninguém procurava nada além de uma explicação plausível para tudo que havia acontecido nos últimos três dias. Então resolvi abrir (por curiosidade admito) para ver se havia algum nome. Abri o telegrama (?) e qual minha surpresa quando vi meu nome escrito nele. Imaginem minha situação, ali num cemitério, num enterro de uma amiga de infância, recebendo uma carta de ninguém. O papel amarelado era apenas por fora, na parte de dentro ainda estava bem branco, como se nunca tivesse entrado em contato com o ar até aquele momento, uma letra cursiva (não, não era impresso), feita com tinta roxa dizia:
Eterno Ofício
Memorando nº 222013
Mesquita, 22 de fevereiro de 2013
De: Aquela que desde sempre trabalha
Para: Thaise Pinto
Assunto: Lembrete crucial
Senhorita Thaise Pinto
Venho por meio deste memorando lembrar que vossa senhoria está morrendo.
Atenciosamente,
Morte.

Quando cheguei a assinatura eu voltei ao início da carta e reli, fiz isso cerca de cinco vezes. Não dava para acreditar que alguém faria uma brincadeira dessas naquele lugar, naquela ocasião. E também, ninguém sabia que eu iria comparecer, como poderiam ter se preparado para tal? Era absurdo. Não podia ser real. Quem já ouviu falar de alguém que recebeu uma carta da morte? Não fazia sentido. Não era real. Eu não queria pensar naquilo. Enfiei o tal telegrama na bolsa e voltei para fora da capela e fiquei conversando com alguns amigos. Houve o enterro, e eu vim embora para casa.
Cheguei em casa, tomei um bom banho, fiz um café bem forte e agora mais calma eu peguei o telegrama na bolsa (a essa altura eu já havia procurado fotos de telegrama na internet e tinha certeza de que era um telegrama). Li mais uma vez e de forma mais pausada o telegrama. Por que era um lembrete? Como alguém comunica que você vai morrer por memorando? Aliás, quem precisa de um memorando para saber que vai morrer? “está morrendo”, ora eu sabia que não sofria de nenhuma doença grave ou que me levasse a algum tipo de quadro terminal. “Está morrendo”, por que o gerúndio? “está morrendo” eu estava sentada na minha cama, com aquele papel em uma mão e um copo de café na outra e essas palavras ficaram ecoando ao lado da minha cabeça está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo está morrendo.
Se passaram duas semanas, eu já estava trabalhando normalmente, indo a faculdade, me encontrando com amigos e bebendo mais que o normal, porque se você recebe um telegrama da Morte é plausível que você utilize alguma droga para lidar com o ocorrido, mas apesar dos pesares, considerava que eu estava indo bem. Até que um dia, em meio a conversas e bastante álcool, acredito que o álcool ajudou bastante nesse processo, eu entendi o que aquele telegrama da Morte estava querendo me dizer, as coisas fizeram sentido como num passo de mágica.
Era um memorando porque não precisava me dar grandes explicações sobre algo que eu já sabia, apenas me lembrava, de forma direta e clara o que eu negava. E o “está morrendo” era o que queria me lembrar. A Morte veio me avisar que ela não estava ali só para os velhos e doentes, ela não estava ali só para quem a esperava. A morte veio para me lembrar que ela era bastante democrática e que realmente estava ali para todos. Ela veio me lembrar que só porque eu tinha vinte anos, eu não estava imune a ela. E mais ainda. Ela veio para me informar que ela caminha ao nosso lado por toda a nossa vida. Até aquele momento eu acreditava que a Morte só aparecia para nós nos nossos momentos finais, que ela era aquela luz que todos nós já ouvimos falar, que ela vinha nos buscar, mas não. A morte veio por meio de um memorando me informar que caminha conosco dia após dia, que vê nossos momentos felizes e tristes, que escuta quando a chamamos para acabar com uma dor, que nos olha de longe, mas atenta mesmo quando não a queremos. E eu que, como todas as jovens de vinte anos, acreditava ser imortal, precisei de um telegrama dela para eu saber que a Morte é uma constante perpétua, e não apenas um ponto na nossa existência.
Ora, e eu reagi a todas essas informações como uma típica jovem que recebe um memorando da Morte aos vinte anos: enlouqueci. Surtei e fui levada ao hospício para umas consultas. Fui a psicólogos para outras consultas e ao bar para aliviar tudo isso. Foi um ano inteiro até eu entender, digerir e aceitar a presença da Morte no meu cotidiano. Até que finalmente aconteceu.
Você pode estar pensando que isso é macabro demais para se manter na mente. Deve estar imaginando como é viver a vida inteira sabendo que a morte está ao lado. Deve estar pensando que isso pode ser absurdamente paralisante. Mas não, na verdade hoje eu e ela nos damos bem. Não sem nos chocar as vezes. Mas ainda assim, nos damos bem. Saber que eu morro todos os dias, as vezes mais de uma vez ao dia, me deu e dá coragem para fazer inúmeras coisas que eu não fazia por acreditar que meu tempo era infinito. Ter clareza, tão cedo, sobre a finitude do meu tempo, me fez mergulhar em incertezas e em estradas que, talvez, se eu acreditasse que teria mais tempo, não teria mergulhado. Hoje olhando para trás eu percebo que não fui a única a receber um memorando da morte naquela tarde de sexta-feira. Porque pessoas que recebem um telegrama da Morte carregam em si uma marca que muitos confundem com loucura ou impulsividade, porque experimentam caminhos pouco usuais no percurso da vida, ouvem menos alguns ruídos que podem ser confundidos com opiniões e mais os ventos escondidos na solidão. Acredite em mim, não é tão melancólico como as palavras fazem parecer. Hoje eu sei que aquela tarde no enterro da Camila foi um divisor de águas na minha vida e de mais algumas pessoas. Ainda é estranho pensar naquele dia, e acredito que sempre será estranho. Mas o telegrama era necessário e ainda é, por isso decidi escrever esse texto, para eu sempre lembrar porque caminho por onde e como caminho.

Observações


Vejo minhas unhas quebrando nas minhas costas
Vejo o horizonte turvar após uma dose
Vejo meu autocontrole se esvair por entre meus dedos
Como o tempo de esvai na cintura da ampulheta.

Proles


Proles

                As vezes ando observando as meninas sentadas em seus portões, pelos caminhos que faço nessas ruas aparentemente quietas e um pouco escuras. Não é incomum essas meninas estarem acompanhadas de meninos que deveriam ser seus irmãos. Mas não são. São seus filhos, ou crias, não sei ao certo. E nessas vezes me ando perguntando, será que elas amam? Ou será que elas só se entregam? Será que de tanto amar elas se entregam? Será que quem não sabe amar sou eu? Já tentei olhar fundo nos olhos de algumas delas, mas não encontro alma alguma. É como se elas apenas estivessem ali. Sentadas. Sem passado, sem futuro e ausentes do próprio presente. Nessas vezes penso que elas só nasceram para fazer outros nascerem da mesma maneira que elas, sem passado, futuro, presente, nutrição, consciência e alma. Nessas vezes pergunto como Deus permite tal escárnio com a vida, como pode alguém nascer só para fazer outro nascer para fazer outro nascer para fazer outro nascer... ad infinitum. É como se a vida se desse a qualquer um, ou será que ela escolhe alguns poucos para dar?
                Coisas que nem o tempo responderá.

Uma pressa só!

Sabe o que é?
A vida passa
E passa de pressa,
Mas numa pressa que não é nossa.
Uma pressa da vida mesmo.
Como se ela quisesse sair de nós.
Como se não soubéssemos estar com ela.
De fato, não sabemos.
De fato nos matamos um pouco cada dia.
Deve ser por isso, a pressa da vida.
Esquecemos como se cuida dela.
Deixamos que ela cuide de nós.
E ela não cuida.
Ela vai embora.

Mas sabe o que é?
Se, cuidamos da vida
Não vivemos,
Então a vida fica
E nós não.
Se não cuidamos da vida
Vivemos
Então a vida vai
E nós não.

É um caso a se pensar.
Talvez eu vire vegetariana.
Mentira.

Uma resposta

Para Letícia Rocha,
A que questionou.
Para ler ao som de
Samba da Benção
De Vinicius de Moraes.
Por que há os desencontros?
Já me disse o poeta “A vida não é brincadeira, amigo. A vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Se não fosse pelos desencontros não teríamos a graça de ganhar ou glória de perder. É assim, imagine só se o limão fosse doce, não teria graça, perderia o desafio, seria uma laranja. Seria uma laranja verde. Perderia sua identidade. A vida se fosse só de encontros, sorrisos e chegadas, seria doce de mais, não teria o desafio. Perderia a graça. E mesmo com a vida, todos os dias colocando na nossa frente obstáculos para quebrar a rotina, ainda há gente que não vive. Ainda há gente que desiste. A verdade é que quem gosta de viver, gosta também dos seus desencontros, porque no exato instante que tudo começa a dar certo, é nesse momento que tudo começa a perder um pouco da graça. É quando o limão começa a ficar doce. Eu sei que às vezes dói. Às vezes o limão azeda tanto, mais tanto, que dói a mandíbula, mas quando tudo fica doce dói também. Lembra? A doçura da vida quando se perdura incomoda. Incomoda porque nos torna vazio, porque nos tira as forças. Enjoa. Simples assim, o limão quando fica doce, cansa. Ninguém tem vontade de engolir um doce de uma vez por todas, a gente quer saaaaboooooreeeeeaaaar, a gente quer que deeemoooooooreee. E no fundo a gente torce para acabar, só para poder reclamar que acabou. O azedo não, o azedo a gente manda logo pra dentro com tequila. A gente faz de tudo pra não sentir, mas sente. E quando a gente sente, vê que na verdade nem é tão ruim assim. O azedo só existe para gente não enjoar do doce. E o doce só existe pra quebrar a rotina do azedo.
No fim tudo é fútil. O doce. O amargo. O encontro. O desencontro. Se tudo vai bem. Se tudo vai mal. Se temos tudo. Se não temos nada. No fim queremos o que não temos e quando temos queremos o que não temos e quando temos queremos o que não temos. Tanto faz. Eu gosto de tequila.

Poema de encontro

As manhãs são escuras e nubladas. Além de frias.
Eu gosto das manhãs assim.
Me identifico com que parece comigo.
Talvez por não me compreender, me apego ao que pode ser parte de mim.
Não sei.
Não sei o que pode ser parte de mim.
Eu não me entendo.
Por isso me escrevo,
Porque talvez assim entenda uma linha de mim.

Entendo um ponto no mundo.
Não entendo nem o que escrevo.
A que era pertenço?
Que estilo me contém?
Sou disforme e redondilha.
Sou neoclássico e barroco.
Sou humana e muitas em uma só.
Talvez seja poeta.
Ou nada.
Talvez uma ilusão. E efêmera.
Talvez o mundo.
 – “Mundo mundo vasto mundo,
Mais vasto é meu coração”.
Me disse um gauche.
Mais vasta é minha alma.
Maior é meu sentir.

Na verdade sou simples,
Mas vejo beleza no indagar-se,
No expandir-se, no explorar-se.
Até perceber-se em milhões de eus
Tão simples em suas unicidades
E tão complexos em seus todos.
O belo é estranho.

Ônibus

Preciso dizer para vocês que eu odeio ônibus, eu odeio também esperar, então eu odeio esperar ônibus. Devo contar que odeio o ônibus, e que também odeio fila, logo eu odeio fila pra entrar no ônibus. Eu posso jurar que odeio ônibus, e que detesto calor, e é assim que eu odeio o calor do ônibus. Mas eu já disse pra vocês que eu odeio ônibus? Pois é, eu também odeio lugar lotado, e por isso eu odeio ônibus lotado. Olha minha gente eu odeio ônibus e enrrolação, e isso faz com que eu odeie a aversão a caminhos rápidos que todo ônibus possui.

Eu não odeio só ônibus, eu odeio muitas coisas, mas é que o ônibus é o único que consegue reunir em si tantas coisas que eu odeio, acho que por isso volto minha predileção de ódio para ele. Juro que não é nada pessoal.

hátemporais


                São necessárias mudanças, no modo de agir, de pensar, de falar, de sentir. É preciso transformar. Parar. Pare. Voltar as origens e ver e procurar e encontrar aonde começamos a pensar como pensamos agora. Como será que começamos a sentir como sentimos agora?
                Revolução de 60. Paz de 70. Estabilização de 80. Estagnação de 90. Nada de 10.
                Pertenço a geração vazia, a geração do nada.
                Sou nostálgica, eu e mais alguns. Alguns poucos. Vejo no que não vivi. Reproduzo o que não vi, mas imaginei. Aspiro o que não conheço, além de não saber real. Não só eu. Eu e mais alguns. Alguns poucos.
                Hoje. Não escrevemos, produzimos. Não lemos, conhecemos. Não conversamos, comunicamos. Não vivemos, somos.
                Perguntas. Produzimos o que? Conhecemos o que? Comunicamos o que? Somos o que? O que somos?
                Hoje. Queremos o amanhã o futuro o new a rapidez a santa modernidade.
                Eu. Quero o ontem, o passado, o vintage, a calma, a tradição santa. Não só eu. Eu e mais alguns. Alguns poucos.
                Retrógado... Retrógrados... Nostálgico... Nostálgicos... Críticos!
                Hoje. Falamos de amor efêmero, descartável. Falamos de política superficial, imediatista. Falamos de inteligência esperta, malandra. Falamos do que não sabemos, não aprofundamos, não interessa.
                Eu. Procuro o amor real, eterno. Procuro a política real, funcional. Procuro inteligência real, sábia. Procuro o que não vejo, não sinto, quero saber. Não só eu. Eu e mais alguns. Alguns poucos.
                Não faço nada... Não fazemos nada... Sou igual... Somos iguais... Deslocados!
                Eu. Não só eu. Eu e mais alguns. Alguns poucos. Somos errados no tempo, nascemos, permanecemos e existimos aonde não pertencemos, não conhecemos, não sentimos, não vemos, não encontramos. Simplesmente não somos. Somos estranhos. Aberrações?
                Sou fora do tempo... Somos errados na hora... Sou estranha a realidade... Somos de outro lugar... atemporais!

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Texto do dia: 12/11/10
À Carol, Guilherme e Mauro, que fazem parte desses "alguns poucos".

Abraços pessoal.
Fiquem em paz.